considerações de uma passante ao acaso

de fora pra dentro:

na pracinha duas menininhas de mãos dadas namoravam as passarinhas arrulhavam os passarinhos lamentavam a má sorte.
inveja mata.

***

gatos cachorros vagabundos proliferam nas ruas dormem sob as marquises tomam banho de sol no centro do coreto e trepam entre as rodas dos carros estacionados.
eles são felizes. eu queria ser.

***

o ciclista mandou o motorista à merda o motorista fechou o ciclista no cruzamento entre a rua tal e a avenida principal o ciclista caiu o motorista descarregou seu 'tresoitão' a esmo ninguém morreu. de menos o alfredo que não tinha nada a ver com a história e estava entregando flores pruma dona de um prédio em frente.

***

passei na costureira e ela disse é pano demais pra criatura de menos mandei fazer um vestidinho com os retalhos. ser baixinha tem suas vantagens.

mariza lourenço

[imagem de wings of a messiah]
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20 de ago. de 2012

abismo

cheguei à conclusão de que este espaço me faz bem e de que a escrita solitária me faz melhor ainda, porque embora não sobreviva dela, é dela que me alimento para dias como este, em que me sinto um peixe morrendo pelas guelras. e arrancar da asfixia algo que valha a pena é exercício árduo de respiração.

foi assim, o sonho, dia desses:

eu caminhava sozinha. à frente o caminho se bifurcava. esse ou aquele? ou o que ficou para trás? retornar sempre se assemelhou à batida insistente de uma tecla aleijada. de maneira que segui em frente, sem eleger caminhos, deixando-me levar por um fio de crença: adiante, talvez, a luz. segure mais essa, mariza, adiante o que há é precipício. segurei e foi na beira. as mãos doloridas. os pés dançando no ar. segure mais, mariza, o fosso é profundo. agora, a escolha é outra. acima ou abaixo? o voo, a falta de ar. o passado é uma teta estéril. o presente é este. a dádiva graciosa de poder soltar as mãos. e o futuro é um segredo que, talvez, eu não queira desvendar.


mariza lourenço

[imagem de ©moshitrip]
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3 de ago. de 2012

o padre

às quartas-feiras me olhava com cara de quem comeu e não gostou e suspirando, indignado, me abria a porta do confessionário antecipando-me as penitências, todas elas bem maiores que os pecados que eu confessava ter. com olhos de desprezo me olhava, como se fosse eu uma pintura mal-acabada de Maria, a Madalena, que não tem cura e não se emenda, mariposa de noites sujas iluminada pela indecência das ruas. com voz de culpa me falava, sentindo-se por mim ofendido, "sujeita ousada", que desrespeitando-lhe o rebanho, fazia barulho com os saltos e sob a transparência do vestido convidava ao pecado. podia sentir-lhe a respiração pesada através da treliça que nos separava, recriminando-me a invasão da hora Sagrada, quando uma multidão de ovelhas carcomidas silenciosamente desfiava nas contas do Rosário suas preces e ladainhas. mesmo assim, continuava me abrindo a porta, às quartas, hora da Ave-Maria, e em todas as despedidas enojado dizia "va¡ e não peques mais!". a isso eu não respondia, só ria um riso escondido, que não era de pilhéria, era mais um sorriso frouxo de quem colheu o que plantou!

mariza lourenço

[imagem ©creativeDIYkei]


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31 de jul. de 2012

tango

Ainda danço tango / Com teus ternos / Guardados no armário.
Ainda faço amor / No mesmo ritmo / Das lembranças / De tua lí­ngua.

Ele não voltou para pegar suas roupas e eu não joguei nada fora: nem as gravatas, nem a flor seca que ainda teima em espalhar um cheiro de despedida pelo quarto.

Deixei tudo lá para me servir de choro e castigo, para me fazer rastejar, sozinha, de culpa e desejo.

Ai, a ausência que nada preenche:

Nem os dedos, nem a vontade que surge quando não peço, nem esta pouca vergonha que me faz gemer seu nome enquanto me arrasto pelo chão.

Nem o tango que ouço enquanto umedeço.

Nem a saudade me revirando por dentro.

Nada preenche:

A fome.

...e a lembrança de suas mãos desenhando em meu corpo todos los pasos de amor.

mariza lourenço
[imagem ©penetre]
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